Viver para contar

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Na semana que se inicia, Roberto Carlos Ramos, 42, não terá tempo para cuidar das galinhas. Nem para contar histórias. É que a vida, quando vira filme, acaba por distanciar-se do real. Ramos mora num sítio nos arredores de Belo Horizonte (MG) e, há anos, tira o ganha-pão das histórias que, com sua prosa animada e fantasiosa, conta, reconta e encena.

Neste momento, porém, ele se desdobra para reinventar o que o cinema contou. Aí é que está o nó. "Minha história é o carro-chefe da minha vida, então não posso me cansar disso. Mas, agora, tô tentando dar uma enxugada, porque o filme conta muita coisa e tem gente que me pergunta tudo de novo." Nesta entrevista por telefone, de Belo Horizonte, o inspirador do filme "O Contador de Histórias" foi solícito e simpático. Mas, claramente, tentou "enxugar" a fala.

Horas antes, ele havia conversado com três jornalistas e, no dia seguinte, gravaria dois programas na Rede Minas. Na terça, ele dará entrevista coletiva e várias individuais, em São Paulo. No correr da semana, participará do "Programa do Jô", do "Altas Horas" e do que mais vier. "Tô fazendo esteira todo dia pra ver se pego fôlego."

Coproduzido pela Warner Bros., "O Contador de Histórias" será lançado, com 120 cópias, na próxima sexta-feira. Para atrair o público, os produtores voltaram os holofotes para o personagem real. "Acho que as pessoas ficam tocadas porque se acostumaram tanto à fantasia que, quando se deparam com o real, se emocionam." Ao fim do filme dirigido por Luiz Villaça, o próprio Ramos (vivido por três atores, em diferentes fases da vida) desponta na tela, contando histórias de mula-sem-cabeça.

Choradeira
Na primeira sessão pública, durante o Festival de Paulínia no mês passado, eram muitos os espectadores que, ao acender das luzes, tentavam disfarçar as lágrimas. Na pré-estreia mineira, à qual Ramos compareceu, o público foi abraçá-lo. "As pessoas querem tocá-lo, falar alguma coisa. No Rio, o filme acabou e ninguém ia embora da sala", diz Villaça.

Mas Ramos tenta se conter. "Sou pé no chão, não sou de badalação. Quando termino meu trabalho, o que quero é voltar logo pra casa. O que está acontecendo é efêmero. Agora tem esse auê, mas depois vou continuar minha vida, criar minhas galinhas. Esse não é meu mundo. Meu mundo não é de personagens, é de pessoas reais", diz ele, com voz séria.
Nascido na favela Pedreira Padre Lopes, em BH, caçula de dez irmãos, Ramos foi parar, aos seis anos, na Febem. Seduzida pela campanha do governo militar, que dizia ser a Febem um espaço de educação, sua mãe decidiu mandá-lo para lá.

Tinha início, assim, mais uma história de maus tratos, fugas e vida à margem. Mas Ramos, ao contrário de seus amigos da rua, teve o destino retorcido graças à pedagoga francesa Margherit Duvas. O filme refaz o percurso dessa relação.

O roteiro parte da memória de Ramos que, como qualquer memória, compõe-se de fatos mas também de lembranças nebulosas. "Sempre tive o cuidado de não contar o que aconteceu comigo de maneira trágica. Conheci milhares de histórias de meninos de rua, mas nunca vi um deles que contasse sua história rindo." Ele ri. Sem negar que, também para si, a versão divertida dói menos.

Vivendo entre as ruas e os muros da Febem, Ramos era mais um caso "irrecuperável" até o surgimento da francesa, que o recebeu em sua casa. De repente, o mundo se abriu para seus 13 anos. Ele aprendeu a ler, em português e francês, e descobriu os segredos da palavra. Entre 1984 e 1986, chegou a viver na França, mas sentiu-se impelido a voltar para o Brasil. "Tinha sempre uma coisa que me inquietava: por que fui abandonado? Voltei e tive essa resposta." É nesse momento de sua vida que o filme acaba.

Vivendo de palestras
De lá para cá, Ramos fez faculdade de pedagogia, adotou 13 filhos e inventou seu jeito de viver. Na era das "palestras motivacionais", conta seus "causos" e seu caso Brasil afora. Chega a fazer quatro palestras por semana. Vai a escolas, mas vai, sobretudo, a grandes empresas. Seu mote, no fundo, é o da volta por cima. "Quando eu era pequeno, ouvi muito a frase "o mundo não presta". Acho que minha história e o filme conseguem mostrar o Brasil pobre por um lado humano."

Villaça diz que, ao chamar Ramos para ver a primeira cópia do filme, terminaram a sessão os dois de mãos dadas, chorando. Ramos, de novo contido, diz que o momento mais impactante foi aquele em que, convidado pelo diretor para fazer a narração em off, viu uma cena que, de repente, o fez voltar mais de 30 anos no tempo.

"Ele colocou as cenas que mostram a passagem do menino pequeno para o maior. Aí eu tinha que dizer: "A cada vez que voltava para a Febem, eu fugia. Eu fugi mais de cem vezes". Quando vi a cena, chorei. Chorei pelo que eu tinha vivido." Cobrindo a narração, aparecem imagens contraditórias com cada uma das frases otimistas que descrevem a instituição.

A única cena que Ramos não encaixa no quebra-cabeça da sua memória é aquela em que aparece roubando. Isso o incomodou? "Ah, era a maneira de mostrar, no filme, que eu não era um anjo." Durante a entrevista, ele fala também do quanto "foi um adolescente difícil" com Margherit. Ao citar a francesa, ele relembra o dia em que, aprovado no vestibular, ligou para ela e, assim, descobriu que ela havia morrido, aos 54 anos, de um aneurisma cerebral.

"O chão se abriu. Até ali, eu não sabia se voltava pra lá, se ficava aqui, não sabia que rumo tomar. Mas, naquele dia, pensei: o único jeito de eu fazer valer o que ela fez por mim é contar minha própria história." Como bom contador que é, Ramos sabe criar seu gran finale.

Ana Paula Sousa
Folha de São Paulo

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