Conheça o passeio pela centenária ferrovia Curitiba-Paranaguá

De longe, parecia cena de filme noir. Nuvens encobriam a estação, o que exigia um casaquinho básico. Não eram nem sete horas da matina, como marcava o relógio na área de embarque. Logo, o fog se dissiparia lentamente com o vento gelado.



De perto, triste constatação. A aparência da Rodoferroviária de Curitiba em absolutamente nada lembra as cinematográficas estações de trem europeias. Simplória e bem quadradona, características que ficam explícitas assim que a neblina desaparece. Britanicamente às 7h30, o trem percorre, em ritmo lento, os trilhos e deixa para trás o desapontamento.

Dentro do vagões, uma babel costurada por famílias, adolescentes e estrangeiros _segundo a empresa, cerca de 30% dos passageiros são gringos.

Ouvia-se de tudo um pouco: inglês, por causa dos americanos e canadenses presentes, espanhol, devido aos hermanos vizinhos e aos mexicanos, e, é claro, português, dos mais variados sotaques, do paraense ao mineiro.

Cada vagão tem um guia, responsável pelo tour. Discursa em inglês e, na sequência, em espanhol, para arrematar em português.

Os estrangeiros estão bem à vontade. Viajar de trem faz parte da rotina deles, ao contrário do que ocorre com os brasileiros. Todos exibiam um euforia explícita, quase infantil.

Por aqui, trem nos remete a uma imagem do passado. A partir da década de 1960, o Brasil simplesmente abandonou o transporte ferroviário de passageiros em promoção do transporte individual. Difícil convencer um desavisado de que o um país como o nosso, de proporções continentais, sucateou o trem como transporte coletivo em prol do asfalto. Mas, finalmente, alguma coisa começa a se mover pelos trilhos brasileiros.

Naquela manhã, o trem partiu com lotação de 900 passageiros, acomodados em 17 vagões, divididos nas classes econômica, turística e executiva.

Do lado de fora, as preliminares começam a acontecer em Curitiba mesmo, afinal a cidade-modelo é repleta de atrativos e dona de uma área respeitável de parques. Ao deixar a capital paranaense, passa por Pinhais, Piraquara e, de repente, a vedete começa a aparecer: a descida pela serra da Graciosa.

Nevoeiro bucólico
Inaugurada em 1885, a ferrovia Curitiba-Paranaguá pode ser considerada um obstáculo superado de engenharia. Na encosta da serra do Mar, em meio à mata atlântica, a estrada passa por cerca de 50 viadutos.

A adrenalina começa a explodir lá pelo meio do caminho. Da janela lateral, dá para ter a exata noção da altura. Não se trata de vertigem. Em alguns momentos, ao atingir 935 m acima do nível do mar, o trem parece levitar.

De repente, um brilho lá no fundo. É o sol refletindo-se numa cachoeira que despenca da serra.

Conforme os vagões se inclinam para uma curva sinuosa, percebem-se facilmente os picos em volta e a baía de Paranaguá dando o ar da graça ao fundo.

A ferrovia corta a serra transversalmente, passa por 13 túneis esculpidos na rocha bruta da serra do Mar. E tome escuridão quando se cruza o túnel Roça Nova, o mais longo deles, com 457 m de extensão.

Naquela hora, a balbúrdia se dissolve no ar. O idioma é um só: gritaria e assobios de empolgação. Outros momentos empolgantes virão como a imagem da cachoeira Véu da Noiva e da sequência de cânions.

O Santuário de Nossa Senhora do Cadeado é um dos mais impressionantes. Quando o trem cruza a ponte São João, com 110 m de comprimento e 55 m de altura, cabecinhas correm para o lado de fora _o da esquerda oferece a melhor vista. Ninguém quer perder aquele visual.

O trem faz parada em estações como a Véu de Noiva. Tudo tem um ar poético e deliciosamente bucólico. Ao todo, são cerca de 110 km de estrada ferro, que existe há quase 125 anos.

Pequeninas estações pipocam perdidas pelo caminho. Quem tem fôlego para seguir parte da jornada a pé salta em Marumbi. É o ponto de parada de alpinistas e "trekkers", que continuam a viagem pela mata que forra montanhas cujo pico Olimpo está a 1.539 m de altitude.

Outros, que não se contentaram com o lanchinho e as frutas servidos a bordo, não veem o momento de chegar à pequenina histórica Morretes, alcançada depois de três horas e meia de viagem.

As boas-vindas são feitas por um batalhão de vendedores de banana, das mais variadas formas. Chips, balas, cachaças... Sem contar os representantes de restaurantes propagandeando o tradicional barreado.

O prato é uma mistura das partes menos nobres do boi, cortadas em cubos e cozida em panela de barro por até 12 horas, o que faz com que a carne se desmanche. Geralmente, vem acompanhado de banana frita (olha ela aí de novo) e farinha de mandioca. Alguns restaurantes são mais "criativos" e apelam para uma combinação inusitada: somam-se ao barreado peixe e camarão.

Historiadores dizem que o prato surgiu há cerca de dois séculos. Só não se sabe ao certo em qual cidade, da serra ou do litoral, ele teve origem: Morretes, Antonina ou Paranaguá. Também é incerto se a receita foi introduzida por tropeiros ou criada durante o antigo Carnaval, chamado Entrudo.

Cidadezinha de boneca
Desde os primeiros passos na estação percebe-se seu encanto. Parece até uma cidadezinha de boneca. Cortada pelo rio Nhumdiaquara, cujas águas refletem o belo e preservado patrimônio colonial, Morretes é ideal, num primeiro momento, para desencanar da vida. Quando a leseira estiver rondando, mande-a embora com uma boa dose de aventura.

Lá, a pedida é fazer um passeio de boia-cross pelo rio antes de sentar-se à mesa e encarar a fartura. A água do Nhumbiaquara é geladíssima, mas essa temperatura é fartamente compensada pelo barato da brincadeira.

Morretes está bem no meio da caminho, cravada na serra do Mar, entre Curitiba e o litoral paranaense. Fundada por jesuítas em 1721, mantém um belo casario preservado.

O retorno a Curitiba é feito de ônibus. São aproximadamente 70 km pela estrada da Graciosa (preciosíssima). Custa R$ 12.

Quem pode passa o dia em Morretes e dá uma esticadinha à vizinha Antonina, outra cidade histórica, datada de 1714, com ruas estreitas e um conjunto arquitetônico peculiarmente luso-brasileiro. Vale uma esticada.

Além de ajudar a passar o tempo, colabora para queimar as calorias excessivas do tão falado barreado.

Folha de São Paulo
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